Allan Kardec
Por: Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Durante todo o século XVIII, a França se ergueu como o farol intelectual da
civilização ocidental. Para lá iam artistas, professores, filósofos e
cientistas. Apesar do esbanjamento e da corrupção da corte, Paris foi, desde
muito tempo, a capital européia mais atrativa para os intelectuais do
continente. Juntamente com a Alemanha, sua maior rival, a França era quem
dirigia os rumos do intelecto humano, e foi com o Iluminismo que Paris passou
ser conhecida como
"a Cidade Luz", pois, depois de tanto tempo à mercê
dos ditames do clero e da aristocracia, o homem era incentivado a ser
independente, a pensar com a própria cabeça. "Todos os homens são iguais", era o
slogan do Iluminismo, que nasceu e teve seus maiores conseqüências em
solo francês.
Embora tenha sido, na verdade, um retumbante movimento burguês, com seus
lamentáveis e invitáveis excessos, a
Revolução Francesa teve o mérito de
desmistificar a pseudo-superioridade das classes privilegiadas (a corrupta
aristocracia e o hipócrita clero católico), levantando a bandeira contagiante da
"Liberdade, Igualdade e Fraternidade", e da "Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão". Evidentemente, a efervescência do período desembocou num paradoxo:
surge o império napoleônico. Mas os frutos intelectuais da Revolução permitiram
limpar a Europa do velho ranço aristocrático, forçando a melhoria dos direitos
sociais em todas as nações do ocidente, fortificando, mais do que nunca, o papel
do Direito.
Foi em meio a esse clima de mudanças e de reconstrução de um novo mundo, onde
vingava, por toda parte, o perfume primaveril do
romantismo, que
nasce, a 03 de outubro de 1804, em plena era napoleônica, na cidade de Lyon,
Hippolite Léon Denizard Rivail, que mais tarde adotaria o pseudônimo
Allan Kardec. Ele era filho de um juiz, Jean Baptiste-Antoine Rivail, e sua
mãe chamava-se Jeanne Duhamel.
Conta-se que o pai o iniciou com todo cuidado nas primeiras letras e o
incentivou à leitura dos clássicos, já em tenra idade. Denizard Rivail sempre se
mostrou muito interessado em ciências e em línguas. Após completar os primeiros
estudos em Lyon, Denizard partiu para a Suíça, para completar seus estudos
secundários na escola do célebre professor Pestalozzi, na cidade de Yverdun. Bem
cedo o jovem de Lyon chama a atenção do mestre, que o coloca como seu auxiliar
nos trabalhos acadêmicos que exercia, tendo algumas vezes substituído Pestalozzi
na direção da escola, enquanto este empreendia alguma viagem de divulgação de
sua metodologia de ensino ou era convidado para criar, em outras localidades,
uma insituição nos moldes de Yverdun. Denizard também exercia com prazer o papel
de professor, ensinando aos seus colegas as lições que aprendera. Ele, apesar de
tão responsável, era visto como um jovem amável e espirituoso, mas muito
disciplinado. Não há registros de que tenha sido mal-quisto em qualquer fase de
seu período estudantil.
Denizard Rivail bacharelara-se em Letras e Ciências. Falava fluentemente
vários idiomas. Após ser dispensado do serviço militar, resolve fundar, em
Paris, uma escola nos moldes da de Yverdun, que foi chamada de Liceu Polimático.
Ele estava empenhado no aperfeiçoamento pedagógico da educação francesa, e, por
isso, escreveu vários livros no assunto, tendo sido premiado, em 1831, por seu
trabalho, pela Academia Real de Arras. Por esta mesma época casa-se com a
professora Amélie Gabrielle Boudet.
Quando tudo parecia ir bem, o sócio de Rivail, que era seus tio, leva o Liceu
à ruína, por dissipar, no jogo, vastas somas. Nada restava a Rivail que pedir a
liquidação do Instituto a que se dedicara com tanto amor. Com o dinheiro
resultante da partilha, Rivail sofre um outro revés da sorte. Após ter aplicado
o dinheiro na casa comercial de um de seus amigos, este logo abre falência, por
realizar maus negócios, e Denizard se vê na constrangedora situação de nada mais
ter.
Para poder sobreviver, Rivail se lança freneticamente a escrever livros
didáticos e a trabalhar como contador de três firmas comerciais, o que lhe
possibilitou, após o susto e o desespero iniciais, recuperar parte de seu antigo
padrão de vida. Chegou a organizar, também, cursos de Física, Química,
Astronomia e Anatomia Comparada que eram muito populares entre os jovens da
época.
Depois de algum tempo, Denizard Rivail já tinha o necessário para viver com
certo conforto e se dedicar ao ensino novamente.
Quase que paralelamente a estes acontecimentos na vida de Denizard Rivail,
ocorre nos E.U.A um conjunto de fenômenos que deram início ao nascimento do
moderno espiritismo (este termo,
espiritismo, foi cunhado em 1857, por
Rivail, para distinguir este movimento do de outras escolas espiritualistas).
Trata-se dos fenômenos ocorridos em Hydesville, estado de New York, em 1848, na
casa da família Fox, que era metodista, e, portanto, longe de ter qualquer queda
ou interesse por fatos que poderíamos hoje chamar de paranormais. As fortes
pancadas pancadas que começaram a ser violentamente ouvidas no quarto das irmãs
Katherine e Margaretta e que se fizeram freqüentes por várias semanas levaram a
primeira, então com nove anos, a desafiar "o batedor" a reproduzir as pancadas
que ela mesma daria. A prontidão das respostas acabaria por marcar o início
desse tipo de comunicação entre vivos e mortos (Enciclopédia Mirador-Britannica,
p. 4171).
Por esta época, em Paris, estava em voga uma nova moda (como se dizia na
época). Tratava-se das chamadas
"mesas falantes" ou
"mesas girantes",
que consistia em se fazer perguntas ao redor de uma mesa ou outro móvel qualquer
que respondia através de pancadas às perguntas formuladas. Isto era visto apenas
como uma sutil e inexplicável diversão de salão, quando não era encarada como
uma brincadeira ou embuste espirituoso. Mas havia quem levasse a sério tais
coisas, pois muitas vezes as mesinhas davam respostas corretas sem que ninguém
conseguisse provar o descobrir quem ou o que fazia as mesas responderem as
questões. Convém notar que esta
"moda" das mesinhas que giravam parecia
ocorrer em todos os lugares e em vários países, num
boom que dificilmente
pode ser creditado ao acaso. Em 1854, Deinzard ouve falar pela primeira vez
sobre tais "fenômenos", mas sua primeira atitude é a de ceticismo:
"eu crerei
quando vir, e quando conseguirem provar-me que uma mesa dispõe de cérebro e
nervos, e que pode se tornar sonâmbula; até que isso se dê, dêem-me a permissão
de não enxergar nisso mais que um conto para provocar o sono".
Por insistência dos amigos, Rivail presencia algumas das manifestações
físicas das mesinhas. Depois da estranheza e da descrença inicial, Rivail começa
a cogitar seriamente na validade de tais fenômenos. Eis o que ele nos relata:
"De repente encontrava-me no meio de um fato esdrúxulo, contrário, à primeira
vista, às leis da natureza, ocorrendo em presença de pessoas honradas e dignas
de fé. Mas a idéia de uma mesa falante ainda não cabia em minha mente". E ainda:
"Pela primeira vez pude testemunhar o fenômeno das mesas que giravam e pulavam
em tais condições que dificilmente poderia se acreditar serem frutos de embuste
ou frade (...) Minhas idéias longe estavam de terem sofrido uma modificação, mas
em tudo aquilo que se sucedia devia haver uma explicação" (segundo Henri
Sausse,
in Allan Kardec, ed. Opus, 1982). Foi em 1855 que Rivail
testemunha pela primeira vez o fenômeno das mesas girantes. Passa então a
observar estes fatos; pesquisa-os cuidadosamente e, graças ao seu espírito de
investigação, que sempre lhe fora peculiar, resiste a elaborar qualquer teoria
preconcebida. Ele quer, a todo custo, descobrir as causas. Como disse Henri
Sausse: "(...) Sua razão repele as revelações, somente aceita observações
objetivas e controláveis. (...) Vários amigos que acompanhavam há cinco anos o
estudo dos fenômenos, (...) colocam à sua disposição mais de cinqüenta cadernos,
contendo as comunicações feitas pelos Espíritos (...). O estudo desses cadernos
constituiu, para Rivail, o trabalho mais profundo e mais decisivo. Foi por esse
estudo que ele se (...) convenceu da existência do mundo invisível e dos
Espíritos."
Ele utilizava o material dos cadernos, com as respostas dadas pelos supostos
espíritos, para refazer as mesmas perguntas para outros médiuns, de preferência
desconhecido dos primeiros. Com base nas novas respostas, Rivail comparava o
conteúdo de ambas, e ficava perplexo com as similaridades freqüentes entre as
elas. Ele reformulava as perguntas, e pedia a ajuda de amigos para fazê-las a
outros médiuns, em outras localidades. Ele recebia as respostas e compilava-as
organizadamente por tópicos e assuntos.
Como poderia pessoas que nunca se viram dar as mesmas respostas para as
mesmas perguntas, às quais possuíam, freqüentemente, um grande peso filosófico e
uma amplidão de conhecimentos que escapavam à formação ou aos conhecimentos
normais dos médiuns? A única resposta lógica seria a de que
agentes
inteligentes as dariam por intermédio de certas pessoas com uma sensibilidade
psíquica especial: os médiuns. Além do mais, Rivail notou que poderia existir
uma extraordinária discrepância entre o desenvolvimento moral e intelectual de
um médium e as comunicações obtidas em estado de transe, que na época se chamava
estado sonambúlico, ou, algumas vezes, de
mesmerização, nome
devido ao pioneiro da hipnose, Mesmer. Sendo assim, a faculdade de comunicar-se
com os agentes inteligentes invisíveis
independente do grau de
desenvolvimento espiritual do médium, havendo médiuns moralmente medíocres, e
até mesmo, perversos, e outros médiuns de grande desenvolvimento moral, que
podem, uns e outros, receberem mensagens de cunho elevado ou banal.
Por estarem numa dimensão diferente da nossa, estes
agentes inteligentes
invisíveis teriam de vivenciar uma realidade própria ao estado vibratório de sua
dimensão que explicaria algumas características das repostas dadas. Isso abriria
um imenso leque de cogitações e de explicações extraordinárias. Mas Rivail não
se deixou levar pelo entusiasmo.
Ele percebeu claramente, desde o início, que muitas das respostas obtidas por
meio dos médiuns eram tolas e pueris, e outras tinham muito a ver com os
conhecimentos ou as crenças do próprio médium, embora, durante o transe, ele
comumente não tivesse consciência do que dizia ou escrevia. Assim, Rivail chegou
às seguintes conclusões:
Primeiro, se são agentes inteligentes
não físicos que dão as
respostas,
nem por isso eles parecem ser muito diferentes dos homens vivos,
pois suas respostas são parecidas às repostas que qualquer homem daria,
inclusive dentro do nível de instrução a que tenham chegado, pois há respostas
muito bem elaborados junto com muitas outras muito fúteis. E, segundo, algumas
vezes as respostas são dadas de forma
não-consciente, pelo próprio
médium. Então, seria o
agente inteligente do próprio médium que daria
certas respostas, em certas ocasiões. Estas repostas não são destituídas de
valor. Elas podem apresentar um extraordinário grau de maturidade, mesmo que
sejam estranhas ao pensamento normal do médium quando em estado de vigília ou de
consciência desperta normal.
Assim, Denizard Rivail reconhecia clara e lucidamente que as entidades, por
serem seres extra-corpóreos,
nem por isso eram necessariamente mais
sábias que os homens encarnados. Elas mesmas diziam que
nada mais eram do
que os
Espíritos dos homens que já morreram, e por isso mesmo,
continuavam tão humanas e cheia de falhas quanto antes. E mais ainda, Rivail
antecipou-se extraordinariamente em mais de quarenta e três anos a
Sigmund
Freud (1856-1939) ao reconhecer uma ação
inconsciente pessoal agindo
sobre a manifestação mediúnica, algumas vezes. Assim, poderemos nos perguntar,
Rivail não teria sido um precursor da cética Psicanálise?
Com o estudo meticuloso das respostas dadas pelos espíritos, por meio de
diversos médiuns e em diversas localidades de diversos países, Rivail teve
suficiente material para compor um livro. Ele faz uma lúcida introdução sobre
seu trabalho no prefácio da obra que fez nascer o moderno Espiritismo:
O
Livro dos Espíritos, lançado em Paris, em 18 de abril de 1857 (faça um
download deste e de outros livros de Kardec na
Home Page da FEB).
Na capa da obra, está o nome do autor, ou melhor, o seu pseudônimo,
Allan
Kardec. Rivail preferiu por este nome em sua mais importante obra, para
diferenciar sua temática das de suas obras anteriores, voltadas à educação e à
pedagogia. E por que
Allan Kardec? Bem, certa ocasião, depois repetida
inúmeras vezes, um
espírito, que se denominava de
Z, havia dito a
Rivail que eles haviam sido amigos numa vida anterior! Eles haviam vivido entre
os
Druidas,
nas Gálias, e o nome de Rivail era, na ocasião, Allan Kardec. É incrível, mas
mais uma vez uma antiga concepção (certeza?) fluente no ocidente desde
Pitágoras,
Sócrates,
Platão,
Plotino e entre
os povos originários da Bretanha Maior e Menor, como os dos
Celtas, bem como
como nos chamados movimentos heréticos como a dos
Cátaros e a dos
Templários,
vinha à tona novamente na Europa: a idéia da
Reencarnação.
De uma profundidade filosófica e psicológica desconcertantes,
O Livro dos
Espíritos possui passagens e reflexões que vão muito além do nível de
conhecimento ordinário de sua época de publicação, inclusive no que tange aos
aspectos científicos da obra. Citemos, só de passagem, a noção de
evolução
das espécies vivas dado pelos espíritos e comentado por Kardec, publicado
nesta obra um ano antes do livro seminal de Charles Darwin,
A Origem das
Espécies, ou , ainda, da identidade entre matéria e energia (chamado por
Kardec de fluido universal), que se diferenciam entre si apenas por um estado de
condensação da energia, muito antes de Albert Einstein.... De igual modo, as
noções de percepção de consciência como sendo diferentes manifestações de
maturação psíquica lembra e muito as atuais abordagens da Psicologia,
principalmente a
Psicologia Transpessoal. Há momentos em que a apresentação da doutrina
em
O Livro dos Espíritos não fica a dever em nada às melhores teorias da
personalidade da Psicologia moderna. A descrição de Kardec do Fluido Universal
lembra a do conceito de
orgônio, ou
orgon, dado pelo psicanalista
Wilhelm Reich, pai da
Bioenergética. Da mesma forma, os fundamentos e
causas do processo da reencarnação é idêntico aos fundamentos e causas
postulados por alguns psicoterapêutas (muitos dos quais não conhecem Allan
Kardec) e que, por meios de desenvolvimento e pesquisas diversos, a partir do
atendimento clínico de pacientes, chegaram à técnica da Terapia de Vida Passada
- TVP. E a filosofia de vida que a doutrina estimula a adotar é, em muitos
pontos, similar às condições propícias ao desenvolvimento da auto-atualização
que é o lema dos psicólogos humanistas, tais como Abraham Maslow e Carl Ransom
Rogers. A noção de
animismo aponta para o conceito de
inconsciente
que teve em Sigmund Freud seu mais sério teórico, e a de evolução espiritual
lembra o processo de
individuação postulado pelo gênio de
Carl Gustav Jung.
E ainda mais assombroso, Kardec logo reconheceria que seu estudo sobre a
comunicação dos chamados espíritos (como elas mesmas se diziam ser, as forças
inteligentes), que ele chamou de
espiritismo, não trazia nada de
realmente novo, a não ser o fato destes fenômenos serem vistos e entendidos sob
a ótica moderna, científica:
(...) Constituindo uma lei da natureza,
os fenômenos estudados pelo Espiritismo hão de ter existido desde a origem dos
tempos e sempre nos esforçamos por demonstrar que dele se descobrem sinais na
antigüidade mais remota. Pitágoras, como se sabe, não foi o autor da
metempsicose (ou seja, da transmigração da alma pela reencarnação)
; ele o
colheu dos filósofos indianos e dos egípcios, que o tinham desde tempos
imemoriais (...) o que não padece dúvidas é que uma idéia não atravessa séculos
e séculos, e nem consegue impor-se à inteligências de escol, se não contiver
algo de sério (...)" (Kardec, p. 143 de O Livro dos Espíritos, ed. FEB).
É por isso também que a introdução de
O Evangelho Segundo o Espiritismo,
de 1864 (obra de cunho filosófico com o objetivo de esclarecer a posição da
doutrina frente à mensagem do
Cristo) traz um estudo
histórico que culmina em um resumo do posicionamento de
Sócrates e
Platão como
precursores dos mais elevados ideais cristãos e, em suas filosofias, de vários
tópicos do espiritismo, como bem fica evidenciado no diálogo
Fédon, de
Platão. Já em
O Livro dos Espíritos, Kardec tece comentários sobre a
ancestralidade das idéias básicas do espiritismo (c.f. capítulo V da obra
citada) e como os fenômenos ditos espíritas são universais.
Os fenômenos que caracterizam o espiritismo, especialmente o da comunicação
entre vivos e "mortos", são mencionados e reconhecidos como existentes em todas
as épocas da humanidade, qualquer que seja a cultura considerada. Um dos mais
antigos e claros registros a este respeito, dentro de nossa tradição
judáico-cristã, é a referência bíblica que está em 1 Samuel 28,7-19, onde Saul
visita a pitonisa (médium) de En-Dor, que lhe possibilitou a comunicação com o
espírito do profeta Samuel. Os fenômenos referentes ao Novo Testamento, mais
apropriadamente aos Evangelhos, podem ser consultados na
Home Page sobre
Jesus.
A idéia da reencarnação, por exemplo, é tão antiga e universal quanto a
própria humanidade (ver o capítulo V de
O Livro dos Espíritos), e é a
base de diversas tradições filosóficas e religiosas do oriente, como o
Budismo e o
Hinduismo, por exemplo, e a das religiões pré-cristãs da Europa, como a dos
Druidas, ou,
posteriormente, baseados no cristianismo, o posicionamento de alguns pais da
Igreja antes do concílio de Constantinopla, em 533, quando a doutrina da
reencarnação foi abolida por motivos políticos, mas que é encontrada em figuras
excepcionais da igreja, como em
Orígenes de
Alexandria, só para citar um exemplo. Ainda houve a presença de alguns
movimentos fortemente contestatórios da ação da Igreja de Roma, como a dos
Cátaros, embora
os conhecimentos antropológicos, históricos e sociológicos de seu tempo não
permitissem a Kardec ir muito além na análise destas tradições, filosofias e
ocorrências históricas. Além do mais, diferentemente de outras escolas
espiritualistas, Kardec fez absoluta questão de expor seus estudos de forma
racional, sem cair nas armadilhas do discurso místico ordinário, mais levado
pela emoção e pela fantasia que pela razão, a partir de fatos, fenômenos e
percepções reais, com o máximo zelo à análise e ao cuidado da descrição dos
fenômenos a partir de sólidos referenciais lógicos. Seu trabalho seria, então,
de trazer ao nível intelectual moderno alguns fenômenos que sempre acompanharam
o homem em sua história e que foram negligenciados pela ciência mecanicista
moderna, principalmente a partir do legado mecanicista de Descartes e de Newton,
apesar de ambos terem sido pessoas espiritualizadas, principalmente o segundo,
que foi o primeiro grande cientista da era moderna e o último grande mago dos
tempos alquímicos.
Em 1º de Janeiro de 1858, Allan Kardec publica o primeiro número da Revista
Espírita, que serviu como poderosa auxiliar para os trabalhos ulteriores e para
a divulgação da Doutrina Espírita na Europa e América.
Segundo Henri Sausse, "em menos de um ano (...)", a Revista Espírita "(...)
estava espalhada por todos os continentes do Globo. (...) De tal maneira
aumentou o número de assinantes, que Kardec, a pedido destes, reimprimiu duas
vezes as coleções de 1858, 1859 e 1860 (...)".
Dentre os mais célebres admiradores, amigos e estudiosos de Kardec ou do
espiritismo, destacamos o famoso astrônomo francês Camille Flammarion, o
filósofo H. Bergson, o psicólogo e filósofo William James, o físico William
Crookes, o biólogo Alfred Russel Wallace, o físico Oliver Lodge, o escritor
Arthur Conan Doyle, dentre inúmeros outros.
Podemos expor a importância do trabalho de Kardec por estas palavras do pai
da moderna Parapsicologia, o fisiólogo Charles Richet:
"Allan Kardec foi o
homem que no período de 1857 a 1871 exerceu a mais penetrante influência, e que
traçou o sulco mais profundo na ciência metapsíquica" (Charles Richet
in
"Traité de Métapsychique", p. 34). Da mesma forma, vários outros estudiosos
confirmam a importância de Allan Kardec no desenvolvimento dos estudos psíquicos
no mundo inteiro. Camille Flammarion, um dos maiores astrônomos da história,
sempre lhe foi grato pelos estudos que eram correntes na Sociedade de Estudos
Espíritas de Paris, e foi ele quem fez o discurso fúnebre de Kardec, e a lista
poderia se alongar com o nome de vários outros célebres pesquisadores, como
Ernesto Bozzano, César Lombroso, dentre vários outros.
Em 1º de abril de 1858, Allan Kardec funda a Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas, que tinha por objetivo "(...)
o estudo de todos os fenômenos
relativos às manifestações espíritas e suas aplicações às ciências morais,
físicas, históricas e psicológicas. (...)" - Não era intenção de Kardec
fundar uma religião, como ocorreu posteriormente a partir do seu legado. Para
ele
"A ciência espírita compreende duas partes: uma experimental, relativa às
manifestações em geral; a outra, filosófica, relativa às manifestações
inteligentes e suas conseqüências" (Kardec, in
O Livro dos Espíritos,
tópico XVII da
Introdução). Discutiremos sobre isso mais adiante, tomando
o próprio Kardec e outros autores como referência.
Em outubro 1861 ocorreu um patético acontecimento, para não dizer repulsivo.
Trata-se do famoso "Auto-de-Fé", promovido pela Igreja Católica na cidade de
Barcelona, Espanha, onde foram queimadas em praça pública cerca de trezentas
publicações espíritas. Estas obras, encomendadas a Allan Kardec pelo
bibliotecário e livreiro Maurício Lachâtre, foram enviadas de forma comum, nas
condições alfandegárias normais, tendo as taxas de importação sido pagas pelo
destinatário às autoridades espanholas; porém a entrega das encomendas não foi
realizada. Elas foram confiscadas pelo Bispo de Barcelona, com a seguinte
justificativa:
"A Igreja Católica é universal, e estes livros são contrários
à fé católica, não podendo o governo (veja só, voltamos a ter a mistura do
poder temporal com o religioso, sendo este último mais forte)
permitir que
eles passem a perverter a moral e religião de outros países".
Talvez com saudades dos áureos tempos de absoluto domínio das consciências
humanas, à base de ferro e fogo, o douto Bispo de Barcelona, em doentia
demonstração de esnobismo típicas de quem se acha no direito pertencer à seleta
instituição dos únicos representantes da vontade de Deus na Terra, fez reacender
as fogueiras que tantas vítimas inocentes fizera em séculos anteriores, onde,
pelas mãos de um carrasco, as obras foram queimadas certamente no lugar das
pessoas que deveriam lá estar: os espíritas franceses em geral, e um homem em
particular: Allan Kardec. Em tudo a pantomima seguiu as regras de uma execução
inquisitorial, como podemos ler pelos autos do processo:
"Assistiram ao auto-de-fé:
"Um padre, com seus hábitos sacerdotais, tendo, em uma das mãos, a cruz e, na
outra, uma tocha;
"Um tabelião encarregado de redigir o processo verbal do auto-de-fé;
"O assistente do tabelião;
"Um funcionário superior da administração das alfândegas;
"Três serventes da alfândega, com a função de alimentar o fogo;
"Um agente da alfândega, representando o proprietário das obras condenadas;
"Uma incalculável multidão se fez presente, enchendo os passeios, cobrindo a
esplanada onde ardia a fogueira;
"Depois de o fogo ter consumido os trezentos volumes e brochuras espíritas, o
sacerdote e seus auxiliares retiraram-se cobertos pelas vaias e maldições dos
inúmeros assitentes, que bradavam: Abaixo a Inquisição!
"Depois, muitas pessoas, em protesto, aproximaram-se e apanharam as cinzas".
E, graças a esta demonstração de brutalidade da religião de Roma, o
espiritismo acabou tendo uma grande repercussão em toda a Espanha, granjeando
inúmeros adeptos. De certa forma, este ato alçou o Espiritismo ao mesmo patamar
de outros mártires da liberdade de espírito, incluindo Jacques DeMolay, Galileu,
Giordano Bruno e aquela que, com toda a infalibilidade papal, foi condenada como
bruxa à fogueira para, quatro séculos depois, ser elevada à categoria de santa,
Joana D'Arc (demorou bastante para a
infalibilidade papal
reconhecer o erro).
Eis uma observação de Kardec, na Revue Spirite de 1864, p. 199, com respeito
à divulgação do Espiritismo como uma religião pelos
doutores da Lei da
era moderna:
"Quem primeiro proclamou que o Espiritismo era uma religião
nova, com seu culto e seus sacerdotes, senão o clero? Onde se viu, até o
presente, o culto e os sacerdotes do Espiritismo? Se algum dia ele se tornar uma
religião, o clero é quem o terá provocado".
Kardec passou o resto da de sua vida no mister de divulgar os resultados de
seus estudos e os de outros colegas. Empreendeu inúmeras viagens pela França e
pela Bélgica entre 1859 a 1868, e escreveu várias brochuras e pequenos artigos
para a divulgação do Espiritismo.
Kardec escreveu ainda muitos outros livros, entre eles se destacam
O Livro
dos Médiuns, de 1861; em 1864,
O Evangelho Segundo o Espiritismo; em
1865, o maravilhoso
O Céu e o Inferno, ou a Justiça Divina Segundo o
Espiritismo; em 1868,
A Gênese. Sempre lúcido e lógico, soube como
enfrentar a oposição e difamação de inimigos gratuitos com dignidade e nobreza,
reconhecendo quando algum argumento oposto tinha um valor sério e sincero.
Manteve-se à frente da Societé Parisiene D'Études Spirites, além de de escrever
outros livros e artigos para a Revista Espírita, até seu desencarne, ocorrido em
31 de março de 1869, aos 65 anos de idade, causado por um colapso cardíaco.
Fonte: http://www.espirito.org.br/portal/doutrina/kardec/biografia-kardec-carlos-fragoso.html